quinta-feira, agosto 09, 2012

A HORA EXTREMA DE SERGUÉI IESSIÊNIN


Quando o recepcionista do Hotel Inglaterra perguntou seu nome, o poeta Serguéi Iessiênin pensou em mentir, dizer qualquer outro que não fosse o seu, mas achou que isso seria uma covardia. Pronunciou seu nome com calma e clareza. Se o nome tivesse uma cor, seria branco. Branco como a neve que tomava de assalto São Petersburgo, então Leningrado, naquelas primeiras horas da madrugada do dia 28 de dezembro de 1925.
Subiu as escadas sem bagagem. Apenas uma pequena valise balançando, um tanto estúpida, na mão esquerda. O quarto era amplo e aquecido. Depositou suavemente a valise sobre a cama, sentou ao lado dela e olhou fixamente para a estrutura de madeira que pendia do teto ao lado de uma lâmpada fraca.
Reconheceu, ali sentado, que sua poesia havia se tornado cínica, talvez cínica demais. Culpava seus cinco casamentos fracassados, especialmente o terceiro, com a bailarina Isadora Duncan. Ele era jovem quando a conheceu e acreditava que ela esgotara em seu espírito a esperança do amor. Vieram outras depois, mas ele já não era o mesmo. De Isadora, sobraram alguns poemas, o alcoolismo e o vício da cocaína, adquirido nos Estados Unidos, e que rapidamente o deteriorava, como um rastilho fulminante de pólvora. Sem falar na depressão, nas alucinações e na breve temporada no hospício. “O amor”, murmurou sem abrir a boca e sem emitir nenhum ruído.
Abriu devagar a valise. O cuidado na operação lembrava uma criança que desembrulha um brinquedo. Retirou de dentro dela a corda, a gilete, um único pedaço de papel e a pena para escrever. Levantou-se, olhou-se no espelho lateral do quarto. Vestia um terno simples, camisa e suspensórios. Despiu-se do paletó. Olhou-se novamente. Parecia querer que seu próprio reflexo lhe dissesse qualquer coisa. Parecia desafiá-lo, inútil.
Pensou na Rússia tremenda do lado de fora da janela, no tropel vermelho e furioso que iria se alastrar pelo mundo. Passou a lâmina em sentido transversal no pulso direito, para não errar o nervo determinante.  Pensou na revolução operária, na doce promessa do aço e do fogo. Pensou em Isadora. Pensou nas outras mulheres. Pensou em seus filhos. Pensou na barbárie convulsiva de um futuro justo. O mesmo procedimento com a lâmina no pulso esquerdo.
Já meio zonzo, apanhou a caneta e o pedaço de papel, que pareceu subitamente de um branco ofuscante, um branco como uma fileira de mil dentes escancarados em sua direção. Molhou a pena em seu próprio sangue e escreveu o poema, num russo claro e correto. A caligrafia surpreendentemente firme – costumava tremer quando escrevia. Um poema endereçado ao amigo Maiakóvski. Um poema sem metáforas. Um poema direto. Um poema quase sem dor.
Antes que o sangue estivesse seco por completo na folha de papel, pendurou a corda na estrutura de madeira compensada do teto. Subiu na cadeira, cambaleou um pouco por causa do torpor e da fraqueza,  passou docemente a corda por seu pescoço, como se fosse um abraço, um afago, uma ternura inesperada, e saltou.

Pouco mais que um estalido, um traque, uma bombinha de criança, é o som do suicídio de um poeta.

*          *         *

A história que narrei acima é real. Reconstituí, de forma ficcional, as últimas horas da vida do poeta russo Serguéi Iessiênin. Ele realmente se matou da forma narrada: cortou os pulsos, escreveu um poema ao Maiakóvski com o próprio sangue e depois se enforcou. Mais tarde, Maiakóvski viria a escrever um de seus mais aclamados poemas, “A Serguéi Iessiênin”, que é uma resposta aos versos do amigo morto. Abaixo, o belíssimo poema escrito em letras rubras por Iessiênin, minutos antes do enforcamento:

Até logo, até logo, companheiro,
Guardo-te no meu peito e te asseguro:
O nosso afastamento passageiro
É sinal de um encontro no futuro.

Adeus, amigo, sem mãos nem palavras.
Não faças um sobrolho pensativo.
Se morrer, nesta vida, não é novo,
Tampouco há novidade em estar vivo.

Serguéi Iessiênin




(Tradução de Augusto de Campos)

6 comentários:

www.vidasamargas.wordpress.com/ disse...

A dramatização que fizeste sobre a morte de Iessiênin é muito delicada e bonita. Os russos sempre legaram à arte a crueza da vida. Nesse momento, transformaste o sussurro de morte do poeta em cor branca, suave, etérea. Eterna.

Bravo.

www.vidasamargas.wordpress.com/ disse...

A dramatização que fizeste sobre a morte de Iessiênin é muito delicada e bonita. Os russos sempre legaram à arte a crueza da vida. Nesse momento, transformaste o sussurro de morte do poeta em cor branca, suave, etérea. Eterna.

Bravo.

Marlos disse...

se não me falha a memória o poema não era dedicado a maiakóvski, esse apenas escreveu o poema 'a serguéi iessienin' para homenageá-lo; nas traduções de augusto e haroldo de campos eles tratam disso.

Unknown disse...

Que triste...

Unknown disse...

Que triste...

Adriano Miranda disse...

SERGUEI ALEXANDROVICH IESSIENIN não cometeu suicídio, como foi divulgado na época e até hoje difundido por muitos. IESSIENIN foi torturado e assassinado pela polícia secreta da então fundada URSS, já sob o comando de Stalin. Com o fim da URSS em 1991, as fotos do corpo de IESSIENIN no Hotel Inglaterra, em São Petersburgo e as fotos da autópsia ( todas disponíveis na internet ) mostram sérios ferimentos no crânio, ferimentos de perfuração aguda. Testemunhos de personagens da época que carregaram o corpo do Hotel Inglaterra ( disponíveis na internet, em russo ) apontam que o mesmo estava coberto de pó, sugerindo que o poeta morreu em outro lugar e foi transportado para o hotel.Seu suicídio foi uma encenação.
SERGUEI ALEXANDROVICH IESSIENIN foi mais uma vítima do socialismo soviético, vítima que já estava sendo monitorada pelo governo desde suas viagens aos EUA e seu casamento com a balailarina norte-americana Isadora Duncan. Defensor da liberdade de expressão, sua filosofia estava em desacordo com o controle total da arte pelo governo russo, que desejava apenas panfletismo comunista. O poeta estava sendo considerado um indivíduo por demais ocidentalizado.

https://s-media-cache-ak0.pinimg.com/originals/19/3a/55/193a55a55add02636e876e35bd46f557.jpg

http://esenin.su/images/stories/Death/Foto/img11.jpg

http://s51.radikal.ru/i133/0810/39/2042dd8bfa17.jpg

Adriano Miranda - Franca, SP. Historiador e professor.