Quando o recepcionista do Hotel
Inglaterra perguntou seu nome, o poeta Serguéi Iessiênin pensou em mentir,
dizer qualquer outro que não fosse o seu, mas achou que isso seria uma
covardia. Pronunciou seu nome com calma e clareza. Se o nome tivesse uma cor,
seria branco. Branco como a neve que tomava de assalto São Petersburgo, então
Leningrado, naquelas primeiras horas da madrugada do dia 28 de dezembro de
1925.
Subiu as escadas sem bagagem. Apenas
uma pequena valise balançando, um tanto estúpida, na mão esquerda. O quarto era
amplo e aquecido. Depositou suavemente a valise sobre a cama, sentou ao lado
dela e olhou fixamente para a estrutura de madeira que pendia do teto ao lado
de uma lâmpada fraca.
Reconheceu, ali sentado, que sua poesia
havia se tornado cínica, talvez cínica demais. Culpava seus cinco casamentos
fracassados, especialmente o terceiro, com a bailarina Isadora Duncan. Ele era
jovem quando a conheceu e acreditava que ela esgotara em seu espírito a esperança
do amor. Vieram outras depois, mas ele já não era o mesmo. De Isadora, sobraram
alguns poemas, o alcoolismo e o vício da cocaína, adquirido nos Estados Unidos,
e que rapidamente o deteriorava, como um rastilho fulminante de pólvora. Sem
falar na depressão, nas alucinações e na breve temporada no hospício. “O amor”,
murmurou sem abrir a boca e sem emitir nenhum ruído.
Abriu devagar a valise. O cuidado na
operação lembrava uma criança que desembrulha um brinquedo. Retirou de dentro
dela a corda, a gilete, um único pedaço de papel e a pena para escrever.
Levantou-se, olhou-se no espelho lateral do quarto. Vestia um terno simples,
camisa e suspensórios. Despiu-se do paletó. Olhou-se novamente. Parecia querer
que seu próprio reflexo lhe dissesse qualquer coisa. Parecia desafiá-lo,
inútil.
Pensou na Rússia tremenda do lado de
fora da janela, no tropel vermelho e furioso que iria se alastrar pelo mundo.
Passou a lâmina em sentido transversal no pulso direito, para não errar o nervo
determinante. Pensou na revolução
operária, na doce promessa do aço e do fogo. Pensou em Isadora. Pensou nas
outras mulheres. Pensou em seus filhos. Pensou na barbárie convulsiva de um
futuro justo. O mesmo procedimento com a lâmina no pulso esquerdo.
Já meio zonzo, apanhou a caneta e o pedaço
de papel, que pareceu subitamente de um branco ofuscante, um branco como uma
fileira de mil dentes escancarados em sua direção. Molhou a pena em seu próprio
sangue e escreveu o poema, num russo claro e correto. A caligrafia
surpreendentemente firme – costumava tremer quando escrevia. Um poema
endereçado ao amigo Maiakóvski. Um poema sem metáforas. Um poema direto. Um
poema quase sem dor.
Antes que o sangue estivesse seco por
completo na folha de papel, pendurou a corda na estrutura de madeira compensada
do teto. Subiu na cadeira, cambaleou um pouco por causa do torpor e da
fraqueza, passou docemente a corda por
seu pescoço, como se fosse um abraço, um afago, uma ternura inesperada, e
saltou.
Pouco mais que um estalido, um traque, uma bombinha de criança,
é o som do suicídio de um poeta.
* * *
A história que narrei acima é real.
Reconstituí, de forma ficcional, as últimas horas da vida do poeta russo
Serguéi Iessiênin. Ele realmente se matou da forma narrada: cortou os pulsos,
escreveu um poema ao Maiakóvski com o próprio sangue e depois se enforcou. Mais
tarde, Maiakóvski viria a escrever um de seus mais aclamados poemas, “A Serguéi
Iessiênin”, que é uma resposta aos versos do amigo morto. Abaixo, o belíssimo
poema escrito em letras rubras por Iessiênin, minutos antes do enforcamento:
Até
logo, até logo, companheiro,
Guardo-te
no meu peito e te asseguro:
O
nosso afastamento passageiro
É
sinal de um encontro no futuro.
Adeus,
amigo, sem mãos nem palavras.
Não
faças um sobrolho pensativo.
Se
morrer, nesta vida, não é novo,
Tampouco
há novidade em estar vivo.
Serguéi Iessiênin
(Tradução
de Augusto de Campos)
6 comentários:
A dramatização que fizeste sobre a morte de Iessiênin é muito delicada e bonita. Os russos sempre legaram à arte a crueza da vida. Nesse momento, transformaste o sussurro de morte do poeta em cor branca, suave, etérea. Eterna.
Bravo.
A dramatização que fizeste sobre a morte de Iessiênin é muito delicada e bonita. Os russos sempre legaram à arte a crueza da vida. Nesse momento, transformaste o sussurro de morte do poeta em cor branca, suave, etérea. Eterna.
Bravo.
se não me falha a memória o poema não era dedicado a maiakóvski, esse apenas escreveu o poema 'a serguéi iessienin' para homenageá-lo; nas traduções de augusto e haroldo de campos eles tratam disso.
Que triste...
Que triste...
SERGUEI ALEXANDROVICH IESSIENIN não cometeu suicídio, como foi divulgado na época e até hoje difundido por muitos. IESSIENIN foi torturado e assassinado pela polícia secreta da então fundada URSS, já sob o comando de Stalin. Com o fim da URSS em 1991, as fotos do corpo de IESSIENIN no Hotel Inglaterra, em São Petersburgo e as fotos da autópsia ( todas disponíveis na internet ) mostram sérios ferimentos no crânio, ferimentos de perfuração aguda. Testemunhos de personagens da época que carregaram o corpo do Hotel Inglaterra ( disponíveis na internet, em russo ) apontam que o mesmo estava coberto de pó, sugerindo que o poeta morreu em outro lugar e foi transportado para o hotel.Seu suicídio foi uma encenação.
SERGUEI ALEXANDROVICH IESSIENIN foi mais uma vítima do socialismo soviético, vítima que já estava sendo monitorada pelo governo desde suas viagens aos EUA e seu casamento com a balailarina norte-americana Isadora Duncan. Defensor da liberdade de expressão, sua filosofia estava em desacordo com o controle total da arte pelo governo russo, que desejava apenas panfletismo comunista. O poeta estava sendo considerado um indivíduo por demais ocidentalizado.
https://s-media-cache-ak0.pinimg.com/originals/19/3a/55/193a55a55add02636e876e35bd46f557.jpg
http://esenin.su/images/stories/Death/Foto/img11.jpg
http://s51.radikal.ru/i133/0810/39/2042dd8bfa17.jpg
Adriano Miranda - Franca, SP. Historiador e professor.
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