quarta-feira, agosto 29, 2012

A maciez da seda, a rigidez do tempo.


Se só eu sempre fui, ao só serei fiel.
Em ti, vivi momentos de intermináveis solilóquios;
Banhei-me na aspereza. Tu: meu vício, meu ópio,
Contigo o ardor do silêncio é prêmio de fel.

Sem ti, eu amanheço em sóis escarlates,
Perto, a noite fenece, e chora o mais triste vento,
Tu és a maciez da seda, a rigidez do tempo,
Um fino fio de coser, arquejado em meus instantes.

E dos teus olhos d’água que abarrotam sádicos anseios,
Chuva de mágoas marca-me tuas pegadas;
Insistes a se perder do peito que suplantaste teus devaneios.

E nesta jornada de contas que palpo teu corpo em preces,
Diz o coração: -- Quero-te perto...
Constata a razão: -- Tu não me mereces!

terça-feira, agosto 28, 2012

Alma Peregrina


É tanto amor...
Chega a inventar que é desespero,
É aquele hálito do deserto
Na alma a crepitar.

A morte que vigia.
O corpo levemente áspero.
Copo e corpo estilhaços.
O vento a passear.

Alma peregrina me iludiu,
Roubou o que tanto eu guardava,
Agora passa ao longe,
Perto poderia estar.

Por onde andas minh’alma?
Aonde vais ao longe!
Alma peregrina
Perto podes ficar.

É tanto amor,
É tanto amor,
Que chega fora do corpo habitar.

É tanto amor,
É tanto amor
Que a alma peregrina,
Riste, triste, viste
Vai ao longe te buscar.

É tanto amor,
E que nasce sem ter
Seio para o alimentar
Cresce sem esteio,
Sem alimento para o saciar.

É tanto amor
Nasce de fonte a secar,
Esperança que se esquece
Menino problema sozinho cresce,
Amor perdido a germinar.

É tanto amor
Da alma que se apossa,
É brandura que goteia
Rio sem nascente,
Sem prumo, sem curso, destino,
Nem aonde vai desembocar.

É tanto amor
Que se alojou no estreito,
Dentro do peito de um jeito,
Não há como tirar.

Foi um tiro sem erro, nem compaixão.
E depois só me deixou essa graça triste,
E o desastre em minha mão não viste,
A queda que tanto vivi a sonhar.

quinta-feira, agosto 23, 2012

Apoplexia da prolixidade.



Todos escrevem melhor do que eu,
Todos lêem coisas melhores do que eu,
Todos são pensantes melhores do que eu,
Eu só sei escrever com o “Aurélio” aberto.

Todos gesticulam gesticulosamente melhor do que eu,
Todos pensam e raciocinam melhor do que eu,
Todos os gostos musicais e literais são melhores do que os meus,
Eu só sei ler o que os outros desprezam.

Todos os cérebros, são prazerosamente mais férteis que o meu,
Todos as falas são mais aveludadas que a minha,
Toda as bocas falam menos merda que a minha,
Todos os corpos são Apolos e Afrodites... Menos o meu.

Eu só sei ser o Quasímodo que me é despido.
Eu só sei ser o leitor de gibis envelhecidos...
Eu só sei ser o pensador que a cabeça dói ao ler um artigo,
Eu só sei ser a alma exilada fraca e absurda!

Todos os conceitos são mais tangíveis que os meus,
Todos os raciocínios são mais lógicos que os meus,
Todos as teses são mais coerentes que as minhas,
Eu só sei pensar pela cabeça dos outros.
           
Todos são engraçados e simpáticos, menos eu!
Todos são sociáveis e simpáticos... Menos eu!
Todos são coerentes e generosos, menos eu!
Menos eu, subtraído nato,
Exclusão de natividade obtusa.

Todas as sínteses são notórias e concisas, menos a minha,
Todos falam estritamente o importante e necessário, menos eu!
Todos escrevem num português bonito e correto... Menos eu!
Menos eu, menos eu... Menos nada!

A minha inveja é mais pérfida e chula quanto a outra qualquer,
Os meus poemas são tão fracos perante o mais simples que houver,
As minhas divagações são mais prolixas do que outra qualquer,
As minhas certezas são mais incertas que a própria palavra.

Quando será que cairei no meu mundo pobre?
Quando?
Quando sairei desse mundo de pessoas férteis e ricas,
Pessoas de beleza interior e exterior mais reluzente que
A merda do sol cinzento que eu enxergo?

Aonde encontrarei as pessoas falhas como eu,
Pessoas nada intelectuais,
Aonde encontrarei mentes nada geniosas,
Sorrisos espontâneos extintos,
Onde as máscaras não existem.
  
Aonde encontrarei o meu mundo,
Aonde serei eu sem ser importunado,
Quem irá viver ao meu lado?
Quem?
Quem não me dirá não ser um nada,
Quem? Quem mais?

Aliás...
Eu sou o nada!
Enquanto a perfeição ronda nos olhos alheios
Nenhuma coisa, coisa alguma, eu sou!
Algo prolixo e sem algum intelecto,
Não me sinto poeta, eu sou um objeto.

Eu nunca fui nada,
Eu nunca vou ser nada...
Mas que se explodam!
Eu não preciso desse tudo,
Nem preencher meu vazio com o tudo de vocês.

Nem tão pouco ser poeta me é necessário.
A poesia já se fez presente e rica noutros olhos,
E viver a escrever vago e torto assim
Deixem pra mim,
Esse é o meu labéu.


Avemus.


Lutar!... que importa, se afinal venceste?
Chorar!... que importa, se lutaste um dia.

Castro Alves.



Eu quisera morrer de um amor que se afugenta!

Qual é o tipo de amor que vive um poeta?
E a sua musa, quem pode se atrever a ser?
Qual é o tipo de arrebatamento que toma o poeta?
Quem é a personagem que o faz sofrer?

Qual é o tipo de vida que vive um poeta?
Qual o caminho que o faz trilhar para morrer?
O que atormenta o coração de um poeta?
Por que sua alma vive nos arroubos a se debater?

Qual o sangue que corre nas veias do poeta?
O que o seu corpo a todos quer dizer?
E se o sangue se esvai maestro no poeta?
E se as palavras fogem sem nada a dizer?

É que se vivo, se tem tanto para sonhar
E na calada os bêbados o confortam,
Torna a via da vida o gosto ébrio da outra boca.

É que se morto se tem tanto a se perder
E na solidão dos vermes transborda último verso,
Síndrome da sina bravia se vai além do perecer.

terça-feira, agosto 21, 2012

Seu nome.


“se eu tivesse um bar ele teria o seu nome
se eu tivesse um barco ele teria o seu nome
se eu comprasse uma égua daria a ela o seu nome
minha cadela imaginária tem o seu nome
se eu enlouquecer passarei as tardes repetindo o seu nome
se eu morrer velhinho, no suspiro final balbuciarei o seu nome
se eu for assassinado com a boca cheia de sangue gritarei o seu nome
se encontrarem meu corpo boiando no mar no meu bolso haverá um bilhete com o seu nome
se eu me suicidar ao puxar o gatilho pensarei no seu nome
a primeira garota que beijei tinha o seu nome
na sétima série eu tinha duas amigas com o seu nome
antes de você tive três namoradas com o seu nome
na rua há mulheres que parecem ter o seu nome
na locadora que frequento tem uma moça com o seu nome
às vezes as nuvens quase formam o seu nome
olhando as estrelas é sempre possível desenhar o seu nome
o último verso do famoso poema de Éluard poderia muito bem ser o seu nome
Apollinaire escreveu poemas a Lou porque na loucura da guerra não conseguia lembrar o seu nome
não entendo por que Chico Buarque não compôs uma música para o seu nome
se eu fosse um travesti usaria o seu nome
se um dia eu mudar de sexo adotarei o seu nome
minha mãe me contou que se eu tivesse nascido menina teria o seu nome
se eu tiver uma filha ela terá o seu nome
minha senha do e-mail já foi o seu nome
minha senha do banco é uma variação do seu nome
tenho pena dos seus filhos porque em geral dizem “mãe” em vez do seu nome
tenho pena dos seus pais porque em geral dizem “filha” em vez do seu nome
tenho muita pena dos seus ex-maridos porque associam o termo ex-mulher ao seu nome
tenho inveja do oficial de registro que datilografou pela primeira vez o seu nome
quando fico bêbado falo muito o seu nome
quando estou sóbrio me controlo para não falar demais o seu nome
é difícil falar de você sem mencionar o seu nome
uma vez sonhei que tudo no mundo tinha o seu nome
coelho tinha o seu nome
xícara tinha o seu nome
teleférico tinha o seu nome
no índice onomástico da minha biografia haverá milhares de ocorrências do seu nome
na foto de Korda para onde olha o Che senão para o infinito do seu nome?
algumas professoras da USP seriam menos amargas se tivessem o seu nome
detesto trabalho porque me impede de me concentrar no seu nome
cabala é uma palavra linda, mas não chega aos pés do seu nome
no cabo da minha bengala gravarei o seu nome
não posso ser niilista enquanto existir o seu nome
não posso ser anarquista se isso implicar a degradação do seu nome
não posso ser comunista se tiver que compartilhar o seu nome
não posso ser fascista se não quero impor a outros o seu nome
não posso ser capitalista se não desejo nada além do seu nome
quando saí da casa dos meus pais fui atrás do seu nome
morei três anos num bairro que tinha o seu nome
espero nunca deixar de te amar para não esquecer o seu nome
espero que você nunca me deixe para eu não ser obrigado a esquecer o seu nome
espero nunca te odiar para não ter que odiar o seu nome
espero que você nunca me odeie para eu não ficar arrasado ao ouvir o seu nome
a literatura não me interessa tanto quanto o seu nome
quando a poesia é boa é como o seu nome
quando a poesia é ruim tem algo do seu nome
estou cansado da vida, mas isso não tem nada a ver com o seu nome
estou escrevendo o quinquagésimo oitavo verso sobre o seu nome
talvez eu não seja um poeta a altura do seu nome
por via das dúvidas vou acabar o poema sem dizer explicitamente o seu nome”



Fabrício Corsaletti.



segunda-feira, agosto 20, 2012

Eu sei hoje em dia


Faço, refaço palavras sem rumo
Com regras impróprias com pouco pudor
Não sigo uma linha amasso o papel
Talvez o coração disperse esta dor.

O breve pode durar para sempre...
Sou lacônica pedra perdida
Sem cria de limo a rolar pelo chão.

Escrevo, não sei se palavras cansadas puídas
Sou frases perdidas sem efeito, rimas sórdidas.
Só sei da poeira de todos teus passos
Ignoro o lirismo morto de hoje sem saída.

Sou pedra perdida de lirismo morto.
Cansei ser silêncio não sei nem porquê
São versos num grito
De velhos velórios
Afônico destoado na multidão a viver.

Uma hecatombe em mim mesmo que explode
Que sai
            Que cai
                        Uma pena sem barulho a bater pelo chão
                                                                     [que eclode.
Cansei em algum dia,
não sei qual o dia
A cor da minha roupa preteou,
do jeito que sou
                                                            [se sou.

Cansei da canção
que não envolve meu medo
Cansei da harmonia
de andar contramão.

Sou pedra perdida
Caída
Rolada
Vencida
Puída
Rendida
Perdendo granito
Meus ais
Teus mais.

Não sei do meu risco
Não conheço o meu chão
Perdi a harmonia
Da tua canção.

Pensei na tua hora
Na hora do adeus
Sorvi minhas lágrimas
                           [duro
Perdi o meu chão
Chorei como Orfeu
      [escuro.
  
Há vida lá fora
Há dias sem fim
Degradei tuas pistas
Tuas falsas verdades.

Sou pedra perdida
Jogada do muro
Tristesse rendida
Um fio no escuro.

E se fui algum dia
Tormento de alguém
Não tenho mais nada que um reles cigarro.
Não tenho mais nada
Nem terra batida.
Das tuas vontades ganhei teu escarro.

A menina que dorme
No quarto ao lado
Um mundo que esqueço
Irrecuperado.

Se eu falo atrapalho não condiz
E sei do teu pífio opróbrio.
Que o teu amor bem se quis
Do meu não saber
e dele dizer que não foi tão notório.

Vestiste de santa e queres morrer-me.

E a velha canseira
O espírito que dorme
Minha alma trancada
Cresci sempre assim.

No leito me deito
Sou pedra perdida
Poema sem efeito
Depois que escrevo: Morri!

Não volto sem medo
Não volto, porque assim não me quis
Não volto não acho não volto
São portas de sonhos
Eu sei do que diz.

Escrevo com sangue do pulso escorrendo
Batendo no peito o punho cerrado
Disfarço meus medos se ainda há tempo
Exijo proponho de ti um legado.

Não tenho mais tempo,
Trinta e um anos!
Lanço à sorte em uma jangada
Estes parcos e serenos anos
Passaram-se as vidas setenta vezes
                                                  [sete
Quais tantas que tenho se queres te dou.
  
Mato-me no ato
Do ato perfeito
Porém me refaço
Eu sei do teu jeito.

Do escombro sou pedra perdida
Um pouco do pouco
Restou do teu gosto bandida
Um resto entornado dum louco.

Não sei nem ao menos
Se em uma lembrança
Farei meus poemas
Contigo esperança.

Sou pedra perdida
Que rola sem limo
Na água rasante
Retém meus respingos.

O breve é para sempre...
Sou pedra perdida de mim sou
[anseio
Restei em raspas das paredes
que cobriam teus medos.

E por tu, mera santa
Sou pedra perdida
Que atiras à frente.

Sou pedra perdida
Sem limo
            Múrmuro
Roleio.

quarta-feira, agosto 15, 2012

Ainda uma vez adeus

                                                                       Adeus qu'eu parto, senhora;
Negou-me o fado inimigo
Passar a vida contigo,
Ter sepultura entre os meus;
Negou-me nesta hora extrema,
Por extrema despedida,
Ouvir-te a voz comovida
Soluçar um breve Adeus!”
Gonçalves Dias




I
Ainda uma vez adeus,
Deus sabe se sofro, Deus sabe de mim,
Alma alvoroço é vela caída,
No mais meu desgosto a tua partida,
Maior teu tormento, deixar-me enfim,

Sem nada que possa, essa impotência
Faz-se em mim como ao sol a luzir.
Meu choro é calado, é pura demência,
Teus olhos de mel de turva eloquência,
Não mais me amará, não vais mais nutrir.

II
Ainda uma vez adeus,
Quem quer que assim quis,
Coração não tem, nem dádiva amor viveu,
Não sabe do sonho amor se perdeu,
Destino do peito, tangente infeliz.

No corredor, adentro os olhares, a sorte aflita,
Vagueza de gestos, suprimidos os afetos,
O abraço que foge, a mão que suplica,
Teus olhos de mel, estranheza me dita,
Teu cheiro inda assombra, andares incompletos.

III
Ainda uma vez adeus,
Afirmas, meu amor menor que o teu. Que horror!
Afirmas, tão pouco eu te dei. Ferir-me é o intento?
Pra ti foi tão pouco, que algoz pensamento,
Que cruel inverdade, que frio dissabor!

Teu corpo era o meu nome, teus olhos minha crença,
Teus beijos meu esteio, teus seios minha força,
A tua alma, pérola encantada da minha existência,
A minha, partida, quebrada, que torpe sentença,
Cheio de nódoa teu grito; estampido que eu não ouça.
  
IV
Ainda uma vez adeus,
Dos corpos detidos, a tua descrença,
Dos beijos no ônibus, tua vaga lembrança,
Das mãos conjugadas, minha desperança,
O abraço espaçado, tua indiferença.

É de raiva e rancor que me afogo agora,
Nas batalhas pensei de estarmos sempre juntos,
Nem empunhaste tua espada, nem resistisse à aurora,
É de súbito que me viro, teu olhar vai-se embora
No jardim da triste sina, nosso amor são dois defuntos.

V
Ainda uma vez adeus,
Lindo sonho, sem poder fugir presos na fugalaça,
Mãos atadas, cumpliciadas selamos nosso destino,
Mas valeu, tigre traçou tão bem, que de inopino
Vejo tua derrota casar com a minha desgraça.

Não é verdade, eu sei, tanto lutaste e foste fera,
Sei que contra o tigre feriste garra contra garra,
Mas o sentir que esmaga o peito não muito espera,
E o nosso filho, hoje em dia é minha quimera,
Não foste fraca. Não me livrei de minhas amarras.

VI
Ainda uma vez adeus,
De pesar o peito abarrotado, ressuscito num soluço,
Deus sabe se bem te amei,
Deus sabe que por ti tanto esperei,
Mas o destino anteviu e foi astuto.

Perdoa, vida, a minha sina, é assim que vivo,
E na calada do Largo, de vinho grito o teu nome,
No peito perduro nosso amor, por vezes soa aflito,
O andar, puro desgosto, a alma, um labirinto,
Que em frangalhos traça, corta, bebe, some.

segunda-feira, agosto 13, 2012

Usura renitente.


Eu não me conformei com os caminhos,
Então me entreguei aos atalhos;

Andava, passo a passo, moroso,
Garoando nas ruas de Curitiba,
Como a uma pluma molhada que insiste em planar,
Acreditando que o sol virá pela manhã
Reformar-lhe o viço, esperanças de voar,
Mas em que vento?
Se não havia espaço vazio, nem campo.


O hálito do último vinho tinha o gosto de um nome,
Entre o ar sonâmbulo do Largo, onde o cavalo me encarava,
Forçando um ressolhar da boca maldizente,
Querendo me dizer algo com os seus olhos vazios e sombrios.
Se a outra metade do seu corpo existisse...

Cavalgaríamos pelas noites e afins de Curitiba,
Um cavalo de chumbo e um poeta de papel,
Ele, cheio de versos súbitos troteados, enclausurados,
Avante! Avante!

A noite é nossa e a madrugada é dos poetas,
Cavalo que chora, avante!
Com o teu porte altivo e austero,
Avante! Avante!
Que a poesia não se findou... ainda.
Avante! Avante!




quinta-feira, agosto 09, 2012

Lo que me gusta de tu cuerpo…


Lo que me gusta de tu cuerpo es el sexo.
Lo que me gusta de tu sexo es la boca.
Lo que me gusta de tu boca es a lengua.
Lo que me gusta de tu lengua es la palabra.

A HORA EXTREMA DE SERGUÉI IESSIÊNIN


Quando o recepcionista do Hotel Inglaterra perguntou seu nome, o poeta Serguéi Iessiênin pensou em mentir, dizer qualquer outro que não fosse o seu, mas achou que isso seria uma covardia. Pronunciou seu nome com calma e clareza. Se o nome tivesse uma cor, seria branco. Branco como a neve que tomava de assalto São Petersburgo, então Leningrado, naquelas primeiras horas da madrugada do dia 28 de dezembro de 1925.
Subiu as escadas sem bagagem. Apenas uma pequena valise balançando, um tanto estúpida, na mão esquerda. O quarto era amplo e aquecido. Depositou suavemente a valise sobre a cama, sentou ao lado dela e olhou fixamente para a estrutura de madeira que pendia do teto ao lado de uma lâmpada fraca.
Reconheceu, ali sentado, que sua poesia havia se tornado cínica, talvez cínica demais. Culpava seus cinco casamentos fracassados, especialmente o terceiro, com a bailarina Isadora Duncan. Ele era jovem quando a conheceu e acreditava que ela esgotara em seu espírito a esperança do amor. Vieram outras depois, mas ele já não era o mesmo. De Isadora, sobraram alguns poemas, o alcoolismo e o vício da cocaína, adquirido nos Estados Unidos, e que rapidamente o deteriorava, como um rastilho fulminante de pólvora. Sem falar na depressão, nas alucinações e na breve temporada no hospício. “O amor”, murmurou sem abrir a boca e sem emitir nenhum ruído.
Abriu devagar a valise. O cuidado na operação lembrava uma criança que desembrulha um brinquedo. Retirou de dentro dela a corda, a gilete, um único pedaço de papel e a pena para escrever. Levantou-se, olhou-se no espelho lateral do quarto. Vestia um terno simples, camisa e suspensórios. Despiu-se do paletó. Olhou-se novamente. Parecia querer que seu próprio reflexo lhe dissesse qualquer coisa. Parecia desafiá-lo, inútil.
Pensou na Rússia tremenda do lado de fora da janela, no tropel vermelho e furioso que iria se alastrar pelo mundo. Passou a lâmina em sentido transversal no pulso direito, para não errar o nervo determinante.  Pensou na revolução operária, na doce promessa do aço e do fogo. Pensou em Isadora. Pensou nas outras mulheres. Pensou em seus filhos. Pensou na barbárie convulsiva de um futuro justo. O mesmo procedimento com a lâmina no pulso esquerdo.
Já meio zonzo, apanhou a caneta e o pedaço de papel, que pareceu subitamente de um branco ofuscante, um branco como uma fileira de mil dentes escancarados em sua direção. Molhou a pena em seu próprio sangue e escreveu o poema, num russo claro e correto. A caligrafia surpreendentemente firme – costumava tremer quando escrevia. Um poema endereçado ao amigo Maiakóvski. Um poema sem metáforas. Um poema direto. Um poema quase sem dor.
Antes que o sangue estivesse seco por completo na folha de papel, pendurou a corda na estrutura de madeira compensada do teto. Subiu na cadeira, cambaleou um pouco por causa do torpor e da fraqueza,  passou docemente a corda por seu pescoço, como se fosse um abraço, um afago, uma ternura inesperada, e saltou.

Pouco mais que um estalido, um traque, uma bombinha de criança, é o som do suicídio de um poeta.

*          *         *

A história que narrei acima é real. Reconstituí, de forma ficcional, as últimas horas da vida do poeta russo Serguéi Iessiênin. Ele realmente se matou da forma narrada: cortou os pulsos, escreveu um poema ao Maiakóvski com o próprio sangue e depois se enforcou. Mais tarde, Maiakóvski viria a escrever um de seus mais aclamados poemas, “A Serguéi Iessiênin”, que é uma resposta aos versos do amigo morto. Abaixo, o belíssimo poema escrito em letras rubras por Iessiênin, minutos antes do enforcamento:

Até logo, até logo, companheiro,
Guardo-te no meu peito e te asseguro:
O nosso afastamento passageiro
É sinal de um encontro no futuro.

Adeus, amigo, sem mãos nem palavras.
Não faças um sobrolho pensativo.
Se morrer, nesta vida, não é novo,
Tampouco há novidade em estar vivo.

Serguéi Iessiênin




(Tradução de Augusto de Campos)